Ocupando espaços: educadores estimulam jovens a transformar o mundo a partir do próprio corpo
O pediatra e sanitarista Daniel Becker, criador do Centro de Promoção da Saúde (Cedaps) e diretor do Instituto Synergos no Brasil; a ex-atleta do vôlei Ana Moser, com seu Instituto Esporte Educação (IEE) e a Caravana do Esporte; e Dora Andrade, a bailarina que virou referência na arte-educação com a Escola de Dança e Integração Social para Crianças e Adolescentes (Edisca).
Poder e território
Duas experiências marcaram profundamente a vida de Daniel Becker, 50 anos: ser monitor, aos 17 anos, no Movimento Juvenil Judaico, no Rio de Janeiro dos anos 1970, e trabalhar num campo de refugiados no Camboja, com a organização Médicos sem Fronteiras, em 1988. O trabalho com os refugiados trouxe uma nova abordagem para o atendimento médico: olhar para a produção social da saúde. De volta ao Brasil, reuniu médicos, enfermeiras e agentes comunitários em torno desta visão no posto de saúde da favela de Vila Canoas. "Otruque era criar vínculos entre os profissionais e a comunidade: o paciente passava a ser atendido pelo mesmo médico durante todo o tratamento, e o médico se sentia responsável e estimulado a buscar maior conhecimento sobre a situação daquela comunidade - porque isso resultava em bem-estar para o paciente" - conta.
A iniciativa lançou a base para o Programa de Saúde da Família (adotado hoje pelo Ministério da Saúde e presente na vida de quase 100 milhões de brasileiros) e para a fundação do Cedaps, em 1993, com a Rede de Comunidade na Luta contra o HIV - que veio a se tornar a atual Rede de Comunidades Saudáveis, atuante em 120 comunidades pobres do Rio de Janeiro. Já a vivência de monitor no Movimento Juvenil Judaico consolidou suas idéias sobre autodeterminação juvenil: "Os grupos de adolescentes se reuniam por puro lazer, sociabilidade e para compartilhar o conhecimento informal do mundo. A intervenção dos adultos era mínima. Mas era grande a liderança dos monitores mais velhos" - lembra Becker. Essa visão do jovem como tradutor dos problemas da comunidade estimulou a criação dos Clubes de Adolescentes (financiados pelo Unicef e implementados pelo Cedaps), que ele considera a sua "experiência mais ousada".
Cada Clube reúne de 25 a 40 participantes, duas vezes por semana, para promover melhorias nas condições de vida do local onde vivem. É liderado pelo adolescente mais velho, capacitado para ser um "dinamizador". "Seu potencial de envolver os mais novos é tamanho que tivemos de ampliar a faixa de participação do projeto para acolher dinamizadores de 18 a 20 anos e crianças de 8 até 14, nos chamados Clubinhos”. Hoje, existem Clubes em sete comunidades do Rio de Janeiro com índices alarmantes de vulnerabilidade social – Morro dos Prazeres, em Santa Tereza; no Rio das Pedras, em Jacarepaguá; e cinco comunidades no Complexo do Alemão. Nos Clubes, os próprios adolescentes definem as temáticas de suas ações e correm atrás de recursos locais: pode ser uma atividade esportiva numa quadra, uma oficina de prevenção de doenças, ou de recreação na piscina mais próxima. “É curioso, por exemplo, quando decidem atacar o tabagismo, em função dos problemas de saúde dos pais; ou fazer atividades recreativas e de reforço escolar para os mais novos, porque estão preocupados em tirá-los da linha de tiro do tráfico”.
O território-corpo
Em 1997, quando ainda brilhava como atacante da Seleção Brasileira de Vôlei, Ana Moser ensaiava os primeiros lances como educadora num grupo que buscava uma nova metodologia para o ensino de voleibol. “A idéia era tratar o esporte numa perspectiva educacional, e não apenas voltado para encontrar talentos. Um esporte para todos, sem excluir ninguém”, diz. Além disso, deveria refletir o que acontece, de fato, na formação do atleta: “A gente começa assim, na brincadeira, nas aulas de educação física e naquilo que ela traz de formação ética para a vida”. O resultado foi implantado nas aulas para crianças do Colégio Magno, numa zona rica de São Paulo, com a colaboração do Coordenador de Educação Física da escola, José Elias Proença. Na perspectiva de Ana Moser, o primeiro território é o próprio corpo: “O corpo é a nossa posição no mundo. O esporte junta, agrega, emociona – ninguém sabe explicar por quê. Então, não podemos admitir uma educação que, em geral, deixa o corpo fora da sala de aula. Ele fica lá, estático, olhando para a nuca do colega.”
Nas regiões de baixíssimo IDH para a infância onde, em geral, Ana Moser passou a atuar como educadora, a degradação do “território-corpo” assusta: “As crianças voltam da escola e passam o resto do dia em casa, trancadas, vendo tevê, impedidas de circular livremente pelas ruas. Não se desenvolvem física e cognitivamente, vivem num mundo alienado pela tevê.” Em 1999, depois de deixar o voleibol, a atleta emplacou o seu primeiro projeto, na favela de Heliópolis, com apoio das comunidades. O compromisso de que os projetos resultassem em desenvolvimento local virou princípio para o Instituto Esporte Educação, criado dois anos depois. O IEE concentra suas atividades na organização de conselhos gestores, na capacitação de professores e na busca de recursos para criar Núcleos Esportivos – quase sempre partindo de equipamentos já existentes no local. “Faz parte do trabalho democratizar o uso do espaço e cuidar para que a própria comunidade se apodere destes Núcleos Esportivos. Em Marechal Tito, na zona leste de São Paulo, por exemplo, as mães bateram o pé e protegeram o Núcleo até eliminar um ponto de tráfico que havia no local”.
O IEE atua predominantemente em regiões pobres – como Jardim São Luís, Interlagos, Itaim Paulista, São Miguel Paulista, em São Paulo, ou Morro do Boréu, no Rio de Janeiro. Atende 7.006 alunos entre crianças e adolescentes, em 11 pólos; e, na área pedagógica, já capacitou 514 professores, até em nível de pós-graduação.Outra vertente de atuação surgiu em 2005: a Caravana do Esporte. Ana Moser e seu grupo de trabalho permanecem durante cinco dias numa cidade – “para dar uma ‘chacoalhada’ no modo de ver as coisas do esporte”. Realizam um grande evento esportivo e põem o prefeito na frente dos secretários de esporte, dos professores, pais e mães. Dali nasce um plano estratégico para o esporte educacional. Nos últimos três anos, a Caravana passou por 30 municípios de 12 estados, atingindo cerca de 45.000 alunos e 7.500 professores e educadores.
O atual desafio é alcançar municípios da zona rural e garantir, por meio de fóruns, a continuidade dos planos. No último, veio a notícia de que a luz elétrica chegou a um povoado de 300 moradores, em Curuçá, no semi-árido baiano, e que a evasão escolar e a repetência caíram de 70% para 35%, após o trabalho da Caravana e do Projeto Corpo e Mente em Ação, da Secretaria Municipal de Educação e do Departamento de Esporte de Curaçá. Ana comemora. Desta vez, aos 40 anos, vestindo a camisa da nova visão do esporte como educação. Cada atividade dos Clubes costuma envolver cerca de 150 moradores. Outras, interclubes, ultrapassam a favela. É o movimento natural. “Depois de conquistada a favela, é a vez de se integrar aos bairros e ir expandindo a ação em direção à cidade”, diz Becker. Como diretor do Instituto Synergos no Brasil, que fomenta parcerias e programas integrados para combater a desigualdade, uma das suas tarefas será “incentivar a participação direta dos jovens na governança urbana, ampliando o acesso aos recursos públicos a que têm direito”. Começa aí uma nova rede de luta por cidades justas e sustentáveis.
O território-palco
No Ceará, a dança, em vez do esporte, é o veículo para a bailarina e coreógrafa Dora Andrade, 49 anos, impactar a vida de crianças e jovens, contribuindo para sua transformação em agentes ativos de mudança em seus territórios. À frente da Edisca - Escola de Dança e Integração Social para Crianças e Adolescentes, ONG que fundou em Fortaleza, ela levou ao palco, em 1996, 40 crianças e adolescentes da região do aterro sanitário de Jangurussu. Filhos de catadores de lixo, os jovens contaram sua história por meio da dança e o lixo virou espetáculo, para a perplexidade da platéia que lotava o Theatro José de Alencar, na capital cearense. No início, aulas de balé eram o trunfo de Dora para se aproximar da comunidade pobre do entorno da escola, no Morro de Santa Terezinha. “A dança era o que eu sabia fazer de melhor. Porém ainda não tinha consciência do quanto a arte toca no que há de fundamental para a reconstrução do homem”. A arte, Dora percebeu em sua trajetória, pode construir para crianças e jovens projetos de vida capazes de contrariar as determinações impostas por um meio hostil, como o das comunidades onde a Edisca atua: na região de Mucuripe, de grande concentração de turismo sexual infanto-juvenil; no conjunto Palmeiras, favela com cinco mil famílias oriundas da desativação do lixão de Jangurussu; no Grande Bom Jardim, área de maior índice de criminalidade de Fortaleza e, mais recentemente, na Favela do Dendê, dentro da área de mangue, com forte presença do tráfico de drogas.
A Edisca passou a oferecer às crianças e aos jovens das comunidades reforço escolar, aulas de línguas estrangeiras, noções de higiene pessoal e expressão corporal, refeições diárias balanceadas, atendimento médico e odontológico, orientação sexual, atividades de artes plásticas, acesso à biblioteca e, claro, participação nos espetáculos. São atendidos hoje cerca de 1.400 alunos de 7 a 19 anos e, segundo Dora, turmas de até 400 deles costumam passar, em média, cinco anos na escola. No período, ela conta, “não há casos de envolvimento com drogas nem ocorrência de gravidez precoce, porque esses jovens constroem um novo projeto de vida e tornam-se agentes de transformação do seu território”. Uma outra arte da bailarina para alcançar tal objetivo é estimular a criação de vínculos entre os educandos e suas comunidades. Para ingressar na Edisca, por exemplo, a criança, além de estar cursando a escola formal, precisa ter ao menos uma pessoa responsável por ela. Pode ser até uma vizinha. A estratégia resultou em mais benefício para as comunidades porque, segundo Dora, foi inevitável estender o processo educacional da ONG a essas mulheres. Criou-se o programa A vida é feminina, que dissemina noções de educação familiar e, por meio de cursos, gera renda para mais de 150 mulheres.
As iniciativas bem-sucedidas levaram Dora a fundar a Oscip Partilha, com a qual a Edisca passou a transferir a tecnologia social. A meta é chegar a 60 municípios do sertão cearense, o novo horizonte de Dora. O carro-chefe da empreitada é o espetáculo DemoAná, que significa movimento do povo de baixo para cima. O nome, assim como a cenografia, o figurino e a iluminação, foi definido por 380 adolescentes da Edisca que sobem juntos ao palco para apresentar a montagem. Um vídeo com o making of do trabalho é distribuído nos municípios para contar e fazer replicar as idéias e os princípios da educadora sobre como dar nova vida a um território com arte, educação e cidadania.
Para fazer contato
Centro de Promoção da Saúde (Cedaps) www.cedaps.org.br
Instituto Synergos no Brasil www.synergos.org.br
Instituto Esporte Educação (IEE) www.esporteeeducacao.org.br
Escola de Dança e Integração Social para Crianças e Adolescentes (Edisca) www.edisca.org.br
Fonte: Centro de Promoção da Saúde (Cedaps)