20150324 Falcao

Capoeira, patrimônio mundial

Por Michely Coutinho. Em 24/03/15 18:03. Atualizada em 24/03/15 18:03.

Artigo de opinião do Prof. José Luiz Cirqueira Falcão no jornal O Popular de 24/03/2015.

Capoeira, patrimônio mundial
José Luiz Cirqueira Falcão

Opinião
O Popular, 24/03/2015 05:00


No dia 26 de Novembro de 2014, ainda em meio às comemorações da consciência negra, a capoeira desferiu mais um golpe de mestre. Ela foi reconhecida como patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Unesco, organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Há seis anos, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), fazia o registro dessa manifestação como patrimônio imaterial da cultura brasileira.

Numa breve espiada no tempo histórico, podemos constatar que no decorrer de um século, essa “arte que encanta” passou de “ginástica degenerativa e doença moral”, perseguida e criminalizada pelo Estado brasileiro, para a condição de patrimônio cultural da humanidade. Agora a Roda de Capoeira se junta ao Samba de Roda do Recôncavo Baiano (BA), à Arte Kusiwa – Pintura Corporal (AP), ao Frevo (PE) e ao Círio de Nazaré (PA), já reconhecidos pela ONU.

Mas cabe perguntar: e agora, Brasil? Será que depois desse reconhecimento, os gestores públicos dos campos com os quais a capoeira mantém interface vão olhar com outros olhos para essa manifestação singular? Será que a partir de agora vão aparecer políticas públicas consistentes e permanentes que valorizem e dignifiquem a capoeira do Brasil?

A relação do Estado com essa prática corporal sempre oscilou entre repressão, desprezo e folclorização. Mas a Unesco chamou a atenção de todos, inclusive daqueles que ainda teimam em desprezar e ignorar os saberes/fazeres provenientes do povo sofrido e explorado.

Se no Brasil, o registro como bem imaterial dessa herança dos negros africanos escravizados, se deu pelo acirramento das reivindicações e mobilizações da comunidade capoeirana, cujos líderes, minimamente organizados em entidades corporativas ou não, reivindicavam e, em muitos casos, exigiam a promoção de políticas públicas especificamente a ela destinadas, o registro pela ONU parece ser fruto de um implacável movimento de expansão, difusão e afirmação da cultura brasileira no exterior.

A despeito de muitas barreiras, a capoeira é uma vencedora, tal como proclamou para representantes de mais de cem nações, o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, em 2004, numa Assembleia da ONU, em Genebra, quando disse que “não foi fácil para a capoeira colocar o pé no mundo” e transformar-se numa arte planetária”. E arrematou: “Muitas foram as adversidades enfrentadas ao longo da história: preconceitos sociais e raciais, perseguições policiais e rejeição das elites”. Esse reconhecimento elucida uma constatação desafiadora: o mesmo Estado que, no final do século 19, criminalizou impiedosamente a capoeira e os seus praticantes, passa a exaltar e propagandear para diplomatas do mundo os encantos desta “arte planetária”.

Se, naquela oportunidade, o ministro da Cultura anunciou que o governo brasileiro estava disposto a fazer uma reparação histórica em relação a esta manifestação dos africanos escravizados no Brasil e, diante de diplomatas do mundo inteiro, promoveu o lançamento das bases de um futuro programa brasileiro para a capoeira, verificamos que desde então muito pouco se tem feito no Brasil para mudar a realidade da capoeira e daqueles que vivem dela e para ela – afinal é importante considerar que capoeira se faz única e exclusivamente por gente.

Do ponto de vista legal, o registro da capoeira pelo Iphan foi fundamentado em pesquisa científica desenvolvida no Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, considerando-se a relevância dessas regiões na configuração histórica da capoeira. Esse registro englobou duas dimensões significativas desta manifestação: a Roda de Capoeira, registrada no Livro de Formas de Expressão, e o Ofício de Mestre de Capoeira, registrado no Livro de Registro dos Saberes. A ONU registrou apenas a Roda de Capoeira. Mas, isso não é pouco. Esse ato pode mudar radicalmente o modo como a capoeira passará a ser tratada pela sociedade brasileira, que tende a ignorar suas gingas e floreios, e também pelo Estado, que ainda não constituiu políticas de salvaguarda desse patrimônio cultural tão original, que no dizer de Dias Gomes sintetiza uma “simbiose perfeita de força e ritmo, poesia e agilidade”, “uma luta de bailarinos”, “dança de gladiadores”, um “duelo de camaradas”.

Ora, patrimônio imaterial está centrado nas relações culturais e não no objeto que pode ser protegido fisicamente. Nesses termos, há uma necessária valorização do sujeito, da pessoa, à medida que o bem imaterial depende do outro para se manifestar, o que reforça a importância do sujeito em todas as suas dimensões. Os registros devem levar em conta as comunidades envolvidas, por isso a diversidade e a referência cultural devem ser resguardadas e estimuladas no processo de registro de bens imateriais.

A própria Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco, de 2003, chama a atenção para as “medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente por meio da educação formal e não-formal – e revitalização deste patrimônio em seus diversos aspectos”.

Os desdobramentos decorrentes desse registro requerem, portanto, ações articuladas e criteriosas por parte do poder público para evitar ações estéreis e prejuízos às pessoas envolvidas diretamente com tal patrimônio. Vale lembrar o exemplo do tombamento da Fábrica de Vinho de Caju Tito Silva, na Paraíba, em 1996 – a mais antiga fábrica de vinho de caju do Brasil, que à época estava desativada há décadas. Neste caso, não houve a menor condição econômica de continuar funcionando e foi transformada num “elefante branco”. Daí a necessidade de critérios bem consistentes para salvaguardar um patrimônio cultural.

É provável que a capoeira em seu atual estado de projeção internacional, ocupando espaços outrora inimagináveis, não corra o risco de ser transformada em um “elefante branco”, nem mesmo de virar artigo de museu, visto que está presente e atuante na vida de milhares de pessoas que a significam e são significadas por ela. Não obstante, é importante pensar como essa valorização da capoeira pode de fato melhorar a qualidade de vida daqueles que se dedicam visceralmente a ela – tornando sua existência e permanência possível. A preservação da diversidade pode constituir um dos princípios de uma boa política. Projetos pontuais já desenvolvidos (Capoeira Viva, Pro-Capoeira, Viva meu Mestre, dentre outros) precisam ser transformados em programas permanentes e ampliados numa perspectiva de política intersetorial.

Afinal, como disse o imortal Mestre Pastinha, pouco antes de morrer na miséria, em 1981, no Abrigo Pedro II, em Salvador: “a capoeira de nada precisa, quem precisa sou eu”.

 

José Luiz Cirqueira Falcão é doutor em Educação, professor associado da Faculdade de Educação Física e Dança da Universidade Federal de Goiás, mestre de Capoeira do Grupo Beribazu – joseluizfalcao@hotmail.com Com: Renata Lima da Silva, doutora em Artes, professora adjunta da Faculdade de Educação Física e Dança da UFG, treinel do Centro de Capoeira Angola Angoleiro Sim Sinhô – renatazabele@gmail.com

 

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